Nada mais contagioso que o movimento do remador. Perdido na imensidão aguda das águas, ele, inimigo do silêncio e peregrino da saudade, resiste ao oco do tempo.
Rema, o remador, levando consigo toda rima da dor.
Permanece esquecido da prisão aquática quase opaca, quase olfativa. Uma gaiola invisível e flutuante.
Seu batelão choca-se com um banco de areia. Interrompe, assim, a filosofia constante do seu navegar.
- Por que diabos! Devia seu fiel escudeiro da travessia se irritar?
O coito interrompido dos pensamentos o fez levar para o ócio.
Amarrara a corda cheia de farpas num galho ao lado e na ponta do barco fez-se a descansar.
Acima dele um apocalipse motorizado. As ligas de ferro da ponte mal agüentavam tanto egoísmo e ódio. Tanto medo e angústia. Mal estar na civilização de aço? Os grandes blocos de concreto sólido mal sustentavam o que havia se tornado a condição humana. Uma água.
Lodosa astúcia dobrava o manto de idéias que pairavam no narcótico do existir. Prédios discretos, humanos em aberto. Imutáveis eram as margens do velho rio, já que as águas passavam rindo do não-ser que perdera sua castidade.
O mundo caía sobre o pequeno remador que, na ponta da canoa com uma vara metafísica, pescava sonhos. No perto, na janela do ser, vinha dos vales oníricos a voz. As palavras se subjetivavam nas copas das árvores resistentes.
Restava sem rosto, sentada de branco, a alegria intransitiva. Com seus longos prolengômeros para o vício, o remador martirizava sua existência enquanto nada. Uma suja inflação da consciência à intempestiva cidade.
Primeira respiração: Libido (Allegro com pitadas de baião)
No acima, depois da sombra, no mesmo milésimo do segundo cuspido, vinte e dois casais e sete solitários haviam arduamente batalhado e por fim conquistado, aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, o orgasmo.
Um sentimento de nobreza penetrava as têmporas do casal mais pobre (materialmente); um momento de pureza ao casal mais afortunado (esdruxulamente).
Todos leves. Súbitos. Divinamente ateus.
A liberdade beijara a genitália de todos naquele breve instante. E a elevação do prazer fluiu pelos ares. Como consolo uivava pingos de Don quijote desonrado. Mefistófeles em gotas de chocolate. Fronhas mordidas por satãs. Metades de todos pecados. Luxúrias de metades do todo.
Deus fora bondoso, concedera paz em alguns segundos para os mortais. Por ser muito ocupado, liberou a brevidade para justificar. Assim, pueril e devasso.
Nos momentos restantes, nos cotidianos buarqueanos (intersubjetividades do mundo burguês) quem se encarrega da incumbência de nos tratar é o diabo. Belzebu, que, muito gentil, se repartiu em bilhões e, morando em nossos límpidos ombros, nos auxilia no dia-a-dia.
Vergonha. É o que se sucede na explosão hormonal do coito.
Agora no pós-tudo nada presta. Nada funciona. Nada se harmoniza. A sensibilidade do nosso terceiro olho nos deixava suscetíveis ao tudo e ao nada, ao vazio cheio de intensidades fúteis.
Nada justificava o fetichismo do remador de desossar vinte e nove fênix sensuais. O rio causava aos filósofos fugidios uma inflação da consciência. Zoé, Bios. Nada entendia. - É crua a vida concluía o remador. E neste instante, nesses dois passos de formiga, o remador, enfim respirava o libido do além das sombras.
Segunda respiração: Fatalidade (Adágio sostenuto na sanfona andante)
Mais dois passos de formigas. Mais mil fatalidades cuspidas ao vento. Há somente dor: graduais barcaças do tempo, miscelâneas tulipas de desejo.
As separações fatais vêm em mil graus.
Depois dos blocos de concreto sólido a morte é apenas o início.
Vidas são promiscuamente riscadas como palavras num quadro negro. ( há porém, os ultra-românticos da Península Ibérica marciana que voluptivamente profanavam tanto a morte e o fim de relacionamentos na mesma caixa de pandora).
Maria das Florências escorrega num chiclete rosado com mancha do asfalto, sendo atropelada em seguida por José, o mesmo que exatamente há um mês três dias e duas horas, o cuspiu ao se engasgar.
Coincidência é a última quimera do destino, e destino, o princípio da fatalidade.
E agora, Maria? E agora, José?
Na curva da respiração do remador, mais de cento e vinte cadáveres quentes como a ilusão, dão entradas a necrotérios mortos, todos em dia com o passaporte de Hades e atrasados da benção de Dionísio.
Sacudidos com o sossego do nada, mais acidentes de trânsito, mais aviões a despencar do galho do céu, mais assassinos menos criativos – O noir comedido do mistério dá lugar à banalidade do colorido. A explosão crepuscular de fatalidades do globo é inevitável, radiante e muda.
Debaixo dos pensamentos medievais da cidade em ardência inconstante, o remador encena um tango argentino com o enjôo renunciado das ondas.
Sob as têmporas grisalhas, rema o remador, e dá, enfim a segunda respiração com sabor de fatalidade.
Terceira respiração: espiritual (minueto rondó na batucada de uma caixinha de fósforo)
No conto, o remador saciava a aporia das águas. Desmascarava com golpes invisíveis os vendilhões do desconhecido, templários do dinheiro e da ganância gasosa.
O espírito se farta do ritual carnavalesco da rotina cotidiana. Não há hora na estrela, no orvalho nem na dor. O tempo é mutável para as cores, e a alma é o espelho para a imensidão prosaica das crendices.
O remador, que rema, metafisicamente não rema. Se deixa levar pelo sabiá, o qual lhe confessa pecados de ribanceira.
Alerta geral no além das sombras. As caixas de concreto que falam - denunciam novos becos religiosos onde a saída nos extradita da verdade. Seria a existência uma doença ?
Muito difícil discorrer sobre o passado no remador que rema, já que o presente futuro se torna herança do passado que virá. Mas uma coisa se acende escura, os únicos consolos que possui é sua canoa ( barco de três triângulos do sertão, feita com tronco de jacarandá) um chapéu de palha, presente de um parente distante que o pariu, e, de saída, a verdade, companheira infiel de sua travessia.
Mas agora, ancorado no meio do matagal das águas, permanece cheio de nadar e debaixo de gritos proféticos.
(O profeta é um poeta enrustido que trabalha em função da mentira própria; a preguiça o priva de mentiras próprias. Incapaz, pobre incapaz!)
Maria das Florências agora assume o completo, o frio culmina na consciência de João, a culpa!
A despedida de Maria das Florências do além sombra é festejada em tristezas fugidias, palavras ao fogo em nome do vazio espiritual.
E agora, Maria? Estais em paz com a guerra? E agora, José, condenado ao remorso sanitário, por causa de uma goma de mascar?
Perante a tamanha profundeza espiritual, o remador que rema, ou melhor, remava, já que está sujeito à sonoridade do imóvel, respira o vazio espiritual de uma multidão de almas veraneias.
Última respiração: Espanto ( sinfonia infernal de um bandolim, suicídio do maestro)
Na margem do meio do caminho do rio, o remador que rema é coberto pelo sotaque das águas. Perdido na ebulição do destino, a ansiedade do remador falava pela boca:
- Vivo pra outros de mim mesmo por isso devo retroceder nesse estupor da tarde, antes que o alarde das moitas do rio se acabe - completava o remador idolatrando a duvida – carrego o Amanhã no peito.
Sente profunda vontade de vomitar sons eufóricos, mas a Verdade, guardada numa bolsa de couro do cabrito, no canto oposto da canoa, o impede.
Sua passagem fora sofrida, as respirações até aqui eram carregados de hipocrisia, semiventos e melodia.
O além das sombras era desinteressante em demasia, porém, ele precisava remar. Era um anônimo com um orgulho revoluto cheio de águas. Transmudando qualquer obstáculo e reprimindo seu feixe de eus.
Embriagado de Faustos repetia que duas almas são muito para um só peito que se arrebenta ao escutar os bombardeios das águas. E lamentava sua condição:
– Sou contaminado pelas coisas da natureza.
O frívolo aspecto do remador surpreendia tudo e todos ao seu redor, a correnteza trazia peixes mortos mas ele insistia no desejo da volúpia metafísica. Por fim, como alguém que devora sua carne ao ver um coração de ouro, dispara aos ventos:
- Não sou Macunaíma, nem Macabéa. Eles são protagonistas da engrenagem maquinaria do pau-brasil, à procura da sorte. Esperança do tolo. Eu não, eu tenho a verdade numa bolsa e uma missão a seguir – completa com alegria – remar.
E uma onda o engole, e sua última respiração se materializa num espanto, e depois, afasia.
Thor Veras